sábado, junho 10, 2006

I Vadiagem - No Umbral do Hades.

I Vadiagem - No Umbral do Hades.
Conta-nos o Bardo como foi parar no Umbral do Hades, o reino escuro de Plutão. E como encontrou-se com seus dois amados Mestres, Virgílio e Dante.



Quando na florescência de meus dias
Encontrava-me, meu coração
Foi perfurado por uma seta
Envenenada do menino alado.
Enamorei-me daquela Dama
Que viria a ferir-me o córdio órgão
Mais que a aguda flecha de Eros.
A punhalada desferida contra
O meu peito fez-me desfalecer
O corpo, deixando-me em torpor.
Assim baixou minha psiquê
Àquelas tenebrosas regiões
Onde governam tenebrosos o rei Plutão
E a rainha Perséfone de belas faces.
Desferido o golpe por agudo punhal
Partira a Dama, deixando-me
Ferido o peito, cravada a pequena lâmina
Em meu abatido órgão.
Desfaleci de dor, que era tanta!
Quando acordei, a pequena
E aguda lâmina encontrava-se
Ainda cravada em meu peito.
Retirei-a, não sem muita dor.
E na tétrica região onde me encontrava
Ouviu-se um gemido de agudo sofrimento.
Ao chão curvaram-se meus joelhos.
Pois, sofrimento igual eu nunca sofrera.
Voltando a mim, e após conseguir
Estancar o sangue que da ferida escorria,
Percebi que já não me encontrava
No Reino dos Vivos.
"Que estranha e tenebrosa paragem
Será esta?", indaguei-me, muita dor sentindo.
E, ao que pareceu-me leram meus dolorosos
Pensamentos, surgem d'entre
As velhas e secas árvores da floresta
Onde me encontrava, o poeta mantuano
E o vate florentino.
Ao que me saudaram: "Salve, ó Bardo
Das Verdes Terras!"
A eles respondi: "Quão glorioso é este
Momento! Salve, Virgílio, épico glorioso!
E tu, ó devoto Dante!"
Minha dor e confusão me impedem
De expressar todo o júbilo de cá encontrar-vos."
Aproximando-se de mim, abatido como estava,
Falou-me o poeta latino:
"Viemos a ti, Bardo, pois ouvimos de longe
O teu grito de dor e, compadecidos, corremos para cá."
E tomou a voz o amante de Beatriz:
"Quando aqui próximo chegamos
Vimos que tratava-se de um nosso irmão.
Cá estamos agora para te socorrer."
Emocionado, feliz e dolorido
Encontrava-me naquele momento,
Porém, consegui conter tão diversas paixões
Que de mim se apossavam
E disse aos dois poetas:
"Bem gostaria de vos considerar
Meus irmãos. Muito mais vos
Considero meus Mestres.
Agradeço por vossa compaixão.
Como aqui vim para?
Não sei ao certo. Lembro-me
Apenas de ter sido atacado
Por minha amada com aguda
Lâmina, desferido golpe em meu coração.
De tanta dor desfaleci e quando
Acordei, já aqui encontrava-me."
Mostrei aos poetas a adaga
Ainda manchada de sangue
Que fora cravada em meu peito.
Disse-me o mantuano:
"Esta é uma adaga covarde,
Meu caro Bardo.
Onde te encontras eu direi:
Estás no Érebo, no reino de Plutão,
A região dos que tombam por tristeza.
Morto não estás. Encontras-te apenas
Em letárgico estado.
Como vês, ainda sangras."
E Virgílio apontou para minha
Ferida, d'onde o líquido vital escorria.
A dor que sentia era tamanha
Que por pouco minhas pernas
Agüentava-me de pé.
Dirigiu-se a mim o florentino:
"Ânimo, Bardo! Dor como a tua
Eu já senti, quando minha amada,
Em Florença, baixou ao reino dos mortos.
E tu mesmo leste o meu relato
Sobre minha descida aos Infernos.
Ergue-te firme em tua vontade
E nos acompanha.
Para fora daqui te conduziremos."
Assim me reanimou o amante
Da belíssima Beatriz.
Os dois poetas puseram-se em passo
E eu os segui confiante,
Pois naquele lugar não podia permanecer.
Seguimos rumo ao Dourado Astro,
Que no nascente se erguia
Grandioso em sua carruagem,
Puxada pelos quatro cavalos fogosos.
Durante algumas horas caminhamos
E eu com a mão em meu peito
Suportando tanta dor que me lacerava
E o vermelho fluido que escorria
Do órgão perfurado.
Falou-me o vate latino:
"Awmergin, tu deves retornar
Ao mundo dos vivos,
Pois missão lá ainda tens.
Cumpre com tua obra,
Ó filho do falcão dourado.
Nós, teus antecessores, estamos
Desde cá a te inspirar.
Nos Elíseos, todos os aedos
Helenos, vates latinos e bardos celtas
Estamos a te aguardar.
Porém, não é chegada a hora
De a Moira cortar o fio de tua vida."
Interrompeu-o Dante e disse:
"É certo, Bardo. Nosso tempo
Entre os vivos se foi.
Agora aqui nos encontramos;
Em merecido repouso
Até que as Moiras digam
O momento devido de retornarmos
N'outros corpos. Assim beberemos
Das águas do Letes e retornaremos
Meio esquecidos deste lugar.
Viemos a ti por compadecimento
Às tuas dores e por te admirarmos
O sonho e o esforço que lá em cima
Empreendes para nossa doutrina
Manteres sempre viva e atuante
Nos corações dos homens."
Assim falou-me o florentino.
A eles dirigi minha dolorida voz:
Que o grande Júpiter vos
Glorifique por um tal zelo e compaixão,
Meus irmãos e mestres!
Ajudai-me a encontrar o caminho
De volta ao meu mundo.
Minha razão está turva
Por causa desta dor que rasga meu peito.
Quase não me agüento de pé!"
Assim, por pouco, não tombo no chão.
E seguraram-me pelos braços os dois poetas.
Disse-me Virgílio:
"Firme deves ser, Bardo,
À dor não te rendas se daqui
Queres sair e continuar a viver."
Disse-me estas palavras de alento
Virgílio, o vate latino.
Já àquela altura, erguera-se
O divino Sol em todo seu esplendor
E sombras, mesmo no Hades,
Não haviam. Saídos da floresta nos
Encontrávamos quando Virgílio
Falou-me: "Bardo, segue adiante
Pois, daqui eu e Dante já não
Podemos seguir. Continua o teu caminho.
Segue em direção ao Áureo Astro."
E ele apontou-me a linha
Do horizonte, dando-me
Também uma folha que
Não consegui identificar e disse-me:
"Ponha na tua boca e a mastigues.
Caminhe em direção ao poente,
Quando o sono vier, pare
De caminhar, deite-se e entregue-se a Hipno.
Ao acordares, estarás já em teu mundo."
Eu ouvi atentamente suas palavras,
Quando o filho de Florença falou:
"Uma vez desperto, tua ferida
Estará curada no corpo,
Mas não em tua alma.
Ela continuará a fazer-te sofrer se cura
Definitiva não buscares.
E para curar uma ferida
N'alma recomendamos
Que te dirijas a Epidauro,
Ao sagrado templo de Asclépio.
É somente lá que poderás
Curar esta maldita chaga
E aliviar tua profunda dor,
Causada pela adaga covarde."
Assim admoestou-me o florentino.
Virgílio e Dante abraçaram-me,
Entregaram-me a erva misteriosa e ordenaram
Que eu seguisse passo.
Suas últimas palavras foram:
"Vai em paz, Bardo. Que Apolo áureo
Ilumine teu caminho.
Dia chegará em que, coroado de louros,
Tu entre nós estarás."
Então, segui meu passo
Ainda muita dor sentindo no peito.
Com o tempo, porém, meus sentidos
Iniciaram a se entorpecer,
Pois a erva eu havia
Posto na boca e mascado
Como havia-me recomendado
O Vate de Mântua.
Quando o Sol já se encontrava
A baixar sua carruagem no poente
Meus membros não se agüentavam
De cansaço e sono. Deitei-me
E suavemente entreguei-me
Ao Sono, filho da Noite.
Ao despertar, encontrava-me
Já no Reino dos Vivos. No Hades
Não mais. No entanto, as lembranças
Do que vi e as palavras que ouvi
No Reino de Plutão continuavam
Ressoando nos antros de mi'a mente.
E não esquecera do que me disseram
Virgílio e Dante, os gloriosos poetas.
Ó Musa, assim cantei minha vadiagem
Tão dolorida pelo Reino Tenebroso.
Lembrei-me do encontro
Com meus grandes mestres
E seus ensinamentos sobre
A cura para a ferida que minh'alma atingia.


Fim da I Vadiagem

Awmergin, o Bardo
Em 10/06/2006, às 02:16h

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